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Lígia Amâncio

O século XXI pode ser o século das mulheres? Houve uma altura que se falava muito do pós-feminismo…


Agora não há nada colectivo para analisar, é tudo individual. E como é tudo individual, tudo depende da minha vontade, da sua vontade... Essa é uma característica de uma época que explica bem a ausência de feminismo. O feminismo, como qualquer outro movimento social, vive de um sentimento de mobilização colectiva. Aqui em Portugal temos outra agravante: nos outros países, os anglo-saxónicos, a própria Itália e a França, tiveram movimentos feministas importantes na segunda vaga e nós não tivemos.


Segunda vaga? Está a falar dos anos 60...


Nós tivemos uma primeira vaga importante (...) , mas na segunda vaga estamos em plena Guerra Colonial, era impossível. Uma sociedade em guerra não pode ter feminismo. A preocupação das mulheres naquela altura era com os pais, os irmãos e os maridos. Essa ausência de experiência histórica do feminismo também nos deixou alguns défices, nomeadamente de experiências, sororidade entre mulheres, respeito pela voz das mulheres. Em contrapartida, tivemos uma entrada facilitada das mulheres no mercado de trabalho pela própria Guerra Colonial. Nos outros países, a entrada das mulheres no mundo do trabalho é uma reivindicação do movimento feminista. O movimento da primeira vaga tinha-se focado no acesso ao voto. O da segunda vaga foca-se no acesso ao emprego. Em Portugal não foi preciso. Não havia homens, tinham emigrado, estavam na guerra, portanto as mulheres tiveram que ir trabalhar.


Nunca tivemos um movimento feminista forte?


Na primeira vaga, tivemos, mas toda a gente já se esqueceu. E nos anos seguintes é diluída na luta antifascista. Depois da dissolução do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, da prisão da Maria Lamas, aqueles anos 40/50 são anos de aniquilação, já ninguém pensava no feminismo, era preciso era combater a ditadura. Isso compreende-se perfeitamente.


Mas como se explica que haja poucos movimentos feministas em Portugal?


É que a ideologia de género da ditadura era muito, muito forte! E foi muito eficiente. Eu pertenço a uma geração em que essa ideologia era ensinada nos manuais escolares. O Salazar tem discursos sobre o que as mulheres devem ser. A Constituição de 1933, no capítulo da igualdade dos cidadãos, abre uma excepção para as mulheres devido ao seu papel na família. Temos uma ditadura com uma ideologia de género fortíssima que nunca foi completamente posta em causa por nenhuma acção da democracia. A democracia nunca combateu activa e conscientemente essa ideologia. (...) Não há nenhuma acção política que combata a ideologia de género.

A socióloga Lígia Amâncio diz que em Portugal ninguém se habituou a debater as desigualdades sociais baseadas no sexo, na etnicidade. “É por isso que estamos com o problema sobre o racismo, outra negação da sociedade portuguesa”. Apesar de ter esperança nas novas gerações, mais desprendidas em relação à “mordaça” existente na sociedade, admite que as coisas ainda piorem “por conta da invasão da extrema-direita”.

AMÂNCIO, Lígia. “A ditadura tinha uma ideologia de género fortíssimaque nunca foi posta em causa”

A ditadura tinha uma ideologia de género fortíssima

The wrong side of heaven

Lígia Amâncio
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